Notas ao café…

Pequenas memórias

Posted in livros ao café by JN on Junho 19, 2010


Retrato de José Saramago
Tullio Pericoli

“À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes. A menos de um quilómetro das últimas casas, para o sul, o Almonda, que é esse o nome do rio da minha aldeia, encontra-se com o Tejo, ao qual (ou a quem, se a licença me é permitida), ajudava, em tempos idos, na medida dos seus limitados caudais, a alagar a lezíria quando as nuvens despejavam cá para baixo as chuvas torrenciais do Inverno e as barragens a montante, pletóricas, congestionadas, eram obrigadas a descarregar o excesso de água acumulada. A terra é plana, lisa como a palma da mão, sem acidentes orográficos dignos de tal nome, um ou outro dique que por ali se tivesse levantado mais servia para guiar a corrente aonde causasse menos dano do que para conter o ímpeto poderoso das cheias. desde tão distantes épocas a gente nascida e vivida na minha aldeia aprendeu a negociar com os dois rios que acabaram por lhes configurar o carácter, o Almonda, que a seus pés desliza, o Tejo, lá mais adiante , meio oculto por trás da muralha de choupos, freixos e salgueiros que lhe vai acompanhando o percurso, e um e outro, por boas ou más razões, omnipresentes na memória e nas falas das famílias. Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar.”

José Saramago, in «As Pequenas Memórias»

Três séculos de direitos

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Fevereiro 1, 2010


Oguz Gurel

José María Ridao no El País, escreve sobre o livro de Lynn Hunt, “La Invencion De Los Derechos Humanos“, algo inventado no séc. XVIII:

Lynn Hunt ha logrado resumir en las pocas palabras de un título, La invención de los derechos humanos, su postura en la discusión larga de siglos sobre si existen los valores universales y cómo llegan a conocerse. Si los derechos humanos como expresión de esos valores se encontrasen ocultos en algún recóndito lugar y hubieran sido repentinamente hallados no podría hablarse de “invención” como hace Hunt, sino de “descubrimiento”. De la misma manera que habría que hablar de “revelación” si conformaran un código dado a conocer por un ser trascendente, por una divinidad. Al tratarlos como el resultado de una invención, Hunt coloca a los seres humanos ante una soledad radical, en la que cualquier guía ética y moral para la acción no puede legítimamente invocar ningún mandato ajeno a su estricta voluntad y, por tanto, a su responsabilidad, a su compromiso. […]

Uivo de Liberdade

Posted in livros ao café by JN on Novembro 27, 2009

“O céu estava limpo e o ar, pela sua própria leveza, instalava uma sensação de paz e bem estar na alcateia. Um pequeno pássaro cantava, invisível, num arbusto. Algures, no cimo de uma árvore, um esquilo-vermelho tagarelava. Um renque de faias farfalhava as suas folhas em forma de coração e, acima, soavam os suspiros mais ásperos dos pinheiros.
Siverfeet rolou sobre o peito e bocejou. Sorria. E de súbito, ali deitado, apontou a cabeça para o céu e deu largas à sua satisfação numa série de uivos musicais. Imediatamente todos os lobos se lhe juntaram, alguns sentando-se, outros erguendo-se. As sua vozes elevavam-se e baixavam num concerto espontâneo, incitado por uma alegria eufórica.
A agradável melodia pairou sobre a floresta e desvaneceu-se. Siverfeet bocejou de novo e rolou sobre o flanco, pousando a cabeça numa das grandes patas.
Em tempos, anos antes, uivara a sua angústia. Hoje, uivava a sua liberdade.”

R. D. Lawrence, in «Uivo de Liberdade»


Dave Granlund

A Ira revisitada

Posted in livros ao café by JN on Abril 24, 2009

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«Os senhores chegavam às terras ou, mais frequentemente, mandavam alguém por eles. Vinham em carros fechados, e apalpavam a terra ressequida com os dedos, mas algumas vezes traziam brocas grandes, que perfuravam o solo para o analisar. Os rendeiros, à porta dos seus pátios, batidos pelo sol, observavam, inquietos, a marcha dos carros através dos campos. E, por fim, os proprietários entravam nos pátios e, sentados nos seus carros, falavam para fora das janelas. Os rendeiros paravam ao lado dos carros por um momento e, depois, punham-se de cócoras a esgravatar a poeira com paus.
Nas portas abertas, as mulheres olhavam para fora e, por detrás delas, as crianças – crianças de cabelo cor de milho e de olhos muito abertos, com um pé descalço por cima do outro pé descalço, remexendo os dedos. As mulheres e as crianças observavam os homens a falar com os senhorios. Mantinham-se silenciosas.
Alguns dos senhorios eram afáveis, porque detestavam o que estavam a fazer; outros mostravam-se irritados, porque lhes repugnava serem cruéis, e ainda outros eram frios, porque de há muito tinham descoberto que não se podia ser proprietário de terras sem se ser frio. Mas todos eles se sentiam apanhados numa teia mais poderosa do que eles próprios. Alguns odiavam os algarismos que os impeliam, outros tinham medo, e outros adoravam os algarismos porque lhes serviam de refúgio para não pensarem nem sentirem. Se um banco ou uma empresa financeira era o dono da terra, o seu delegado dizia: «O Banco – ou a Companhia – precisa, quer, insiste, exige», como se o Banco ou Companhia fosse um monstro, com ideias e sentimentos, que os tivesse apanhado na rede. Estes não tomavam responsabilidades em nome dos bancos ou das companhias porque eram homens e escravos, ao passo que os bancos eram ao mesmo tempo maquinas e patrões.»

John Steinbeck, in «As Vinhas da Ira»

Steinbeck escreveu «As Vinhas da Ira» há setenta anos atrás. Uma novela épica que retrata, durante a Grande Depressão, a vida dos que perderam as suas terras e casas na figura da família Joad, que tem que deixar a sua casa no Oklahoma e parte para a miragem da Califórnia. Setenta anos depois, Robert DeMott, um estudioso de Steinbeck, afirma que o livro apresenta um olhar profético ao que se passa actualmente.

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Bruce Beattie, «Daytona Beach News-Journal»

Uma batalha que não aconteceu

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Agosto 15, 2008

As coisas que se encontram quando se pesquisam livros usados online, este é de 2005 e alguém até tinha umas ideias interessantes. Quem sabe, talvez nas próximas.

Into the Heart of Whaling

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Maio 9, 2008

«To many, the whale is a majestic mammal, the ‘mind in the ocean’. What were once whaling towns have become homes to hordes of devoted whale watchers, and whaling, for the most part, was thought to have been vanquished. It was just a matter of waiting for those few misguided nations still whaling to come to their senses.
That never happened. Instead, the whalers came back. In 1987, the first full year after the worldwide moratorium on commercial whaling was agreed to, 100 whales were killed on the end of grenade-tipped harpoons. In 2005, the figure was around 2,500.
Harpoon reveals the political machinations and manipulation at the highest levels that have allowed some countries, particularly Japan, to continue hunting whales against the wishes of the world, with the IWC powerless to stop the slaughter.»

Andrew Darby, in «Harpoon: Into the Heart of Whaling»


Paul Zanetti, «Cagle Cartoons»

«THE hunting, in turn, of the right whale, the blue, the sperm, the minke and the humpback form the backbone of this entertaining and interesting book by Andrew Darby, an environmental reporter on the Sydney Morning Herald. With each species he builds up the reader’s fascination further, before delivering a (mostly unhappy) account of its fate.
Mr Darby produces some horrifying facts, beginning with Soviet whalers. While most other nations were winding down their harpooning operations because too few whales remained for any profit to be made, between 1959 and 1963 the Soviet Union built a new factory fleet every year. «A barren desert must remain where the Slava has operated,» one fleet’s captain-director ordered his crew. «Catch all whales you meet—small size, sucklings and lactating females all alike.
[…] Mr Darby takes the reader deep into the whaling issue. To the environmentally-minded West, whales are a conservation cause. Nevertheless, Norway and Iceland, together with Japan, have killed 30,000 whales since the moratorium came into effect in 1986. Now the growing appreciation of whale intelligence and sentience has added an ethical dimension to the issue. To the Japanese, whaling symbolises a tradition of seafood that is central to their culture, and they are campaigning hard for the moratorium to be lifted, citing evidence that stocks are starting to recover. Ethics has no part to play, they argue, for if concern for animal rights can stop the harvesting of whales, when will compassion prevent the netting of fish?» [The Economist]


Paresh Nath, «National Herald»

O Cavaleiro Inexistente

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Março 14, 2008

«Na armadura branca completamente equipada, no interior de sua tenda, uma das mais ordenadas e confortáveis do acampamento cristão, tentava manter-se deitado e continuava pensando: não os pensamentos ociosos e divagantes de quem está para pegar no sono, mas sempre raciocínios determinados e exactos. Pouco depois, erguia-se sobre um cotovelo: necessitava de alguma ocupação manual, como lustrar a espada, que já era bem brilhante, ou passar graxa nas juntas da armadura.»

Italo Calvino, in «O Cavaleiro Inexistente»

Calvino escreve sobre um cavaleiro que é apenas uma armadura reluzente com um voz metálica, fria e impessoal; dentro dela apenas o vazio e a solidão que representam o fim de uma visão épica de mundo. O cavaleiro do romance de Calvino não existe: Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Atri de Corbentraz e Surra, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, usa uma armadura imaculadamente branca e dentro dela não existe nada.

Agilulfo é inexistência munida de consciência e vontade. Modelo de cavaleiro, sua ética é marcada pelos valores do mundo dos cavaleiros medievais. Correto, impecável e preso aos seus valores, ele é o modelo do varão que se dedica a sua causa. Só que ele não existe fisicamente. Do modelo medieval, restou apenas a armadura, as armas e um código de honra a ser seguido.

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Ed Stein, «Rocky Mountain News»

Excertos dos diários de Adão e Eva

Posted in livros ao café by JN on Fevereiro 4, 2008

«Segunda-feira
Este novo ser de cabelo longo é um valente empecilho. Anda sempre à minha volta e segue-me para todo o lado. Não gosto disto; não estou habituado a ter companhia. Preferia que ficasse com os outros animais.

Segunda–feira.
O novo ser diz que se chama Eva.

Domingo
Durante toda a semana segui-o e tentei travar conhecimento. Tive de ser eu a falar porque ele é tímido, mas isso não me chateia. Ele parecia contente por me ter por ali e eu fartei-me de usar o socializante «nós» porque isso parecia deixá-lo orgulhoso por estar incluído em alguma coisa.»

Segunda–feira
Hoje de manha disse-lhe o meu nome. E estava com esperanças que lhe interessasse. Mas ele não ligou nenhuma. É estranho. Se fosse ele a dizer-me o seu nome eu ter-me-ia interessado. Para os meus ouvidos teria sido o mais doce som que eu jamais ouvira.»

Mark Twain, in «Excertos dos diários de Adão e Eva»

Não é uma obra religiosa; é apenas uma história contada por alguém com um grande sentido de humor. Para Twain não é a polémica que interessa, apenas as relações humanas de qualquer casal que aprende a se conhecer.

Quando o primeiro Homem encontrou a primeira mulher e a «guerra da vida» começou. Quarenta anos mais tarde Adão escreverá no túmulo de Eva: «Onde quer que ela estivesse era o Éden.»

Porque há sempre uma primeira vez…

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«The First Time» de Angel Boligan

Um Fantasma do passado

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Dezembro 24, 2007

– Mercy! he said. – Dreadful apparition, why do you trouble me?
– Man of the worldly mind! replied the Ghost, – do you believe in me or not?
– I do, – said Scrooge. – I must. But why do spirits walk the earth, and why do they come to me?
– It is required of every man, – the Ghost returned, – that the spirit within him should walk abroad among his fellowmen, and travel far and wide; and if that spirit goes not forth in life, it is condemned to do so after death. It is doomed to wander through the world – oh, woe is me! – and witness what it cannot share, but might have shared on earth, and turned to happiness!

Again the spectre raised a cry, and shook its chain and wrung its shadowy hands.

– You are fettered, – said Scrooge, trembling. – Tell me why?
– I wear the chain I forged in life, – replied the Ghost. – I made it link by link, and yard by yard; I girded it on of my own free will, and of my own free will I wore it. Is its pattern strange to you?

Scrooge trembled more and more.

– Or would you know, – pursued the Ghost, – the weight and length of the strong coil you bear yourself? It was full as heavy and as long as this, seven Christmas Eves ago. You have laboured on it, since. It is a ponderous chain!

Scrooge glanced about him on the floor, in the expectation of finding himself surrounded by some fifty or sixty fathoms of iron cable: but he could see nothing.

– Jacob, – he said, imploringly. – Old Jacob Marley, tell me more. Speak comfort to me, Jacob!
– I have none to give, – the Ghost replied. – It comes from other regions, Ebenezer Scrooge, and is conveyed by other ministers, to other kinds of men. Nor can I tell you what I would. A very little more, is all permitted to me. I cannot rest, I cannot stay, I cannot linger anywhere. My spirit never walked beyond our counting-house – mark me! – in life my spirit never roved beyond the narrow limits of our money-changing hole; and weary journeys lie before me!

Retirado de «A Christmas Carol» de Charles Dickens.

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John Sherffius, «Boulder Camera»

Actores:
Ebenezer Scrooge: George W. Bush
Ghost of Christmas Past: Richard Nixon

Conversas com Carl Sagan

Posted in livros ao café by JN on Dezembro 12, 2007

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Carl Sagan (1934-1996)

«Vivemos num pedaço obscuro de rocha e metal circulando um sol enfadonho, que fica na periferia de uma galáxia perfeitamente ordinária composta por 400 biliões de outros sóis, a qual, por sua vez, é uma de entre os cerca de cem biliões de galáxias que constituem o universo, o qual, assim o sugerem as concepções mais recentes, é apenas um de um número colossal – talvez de um número infinito – de outros universos fechados. A partir desta perspectiva, a ideia de que estamos no centro, de que temos alguma importância cósmica, é absurda.»

Carl Sagan, numa entrevista à revista «Interview» em 1996; reproduzido no livro «Conversas com Carl Sagan».

«As 16 conversas com Carl Sagan, transcritas neste livro, dão-nos uma visão do ser humano único, com uma visão inteligente, acutilante e actual sobre o Homem, a Humanidade e o seu papel no planeta Terra e no Universo.»

Pedro Russo, prefácio de «Conversas com Carl Sagan» da editora Quasi.

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Gary Larson

Gosto de contar histórias mentirosas

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Novembro 22, 2007

«A nossa memória tem lacunas e tende a ordenar e a embelezar os factos que se juntaram para deles fazer uma história. Mal se começa a ordenar e a narrar o que se nos vai apresentando como um amontoado amorfo de recordações, começa outro processo: a narração. E depois passa-se da ficção para a realidade… A fronteira é flutuante.
… gosto de contar histórias mentirosas, porque isso faz parte do ofício. O escritor é alguém que está autorizado a contar histórias de mentira, a inventar. Frequentemente aproximamo-nos mais da verdade, inventado factos que cessaram de existir, construindo uma história à volta deles. No meu livro deixo sempre possibilidade ao leitor de escolher esta ou outra variante.»

Excerto da entrevista a Günter Grass, prémio Nobel da Literatura de 1999, onde falada sua vida, dos livros e do seu mais recente, «Descascando a Cebola», que é, em primeiro lugar, uma autobiografia.

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«Autobiografia». Angel Boligan, «El Universal»

60 anos da Magnum

Posted in fotografia ao café, livros ao café by JN on Novembro 21, 2007

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Mulheres muçulmanas rezam na Índia (1948). Henri Cartier-Bresson/Magnum Photos

Henri Cartier-Bresson, George Rodgers, Robert Capa, David «Chim» Seymour and Bill Vandivert em Abril 1947, no restaurante do Museu de Arte Moderna em Nova Iorque, tiveram uma ideia para fundar uma revista de foto-jornalismo; nascia assim a Magnum. Para celebrar os 60 anos da revista a editora Thames & Hudson lançou «Magnum Magnum», um livro com mais de 400 fotos de alguns dos fotógrafos mais famosos da Magnum, como Henri Cartier-Bresson, Robert Capa e Eugene Smith. Além destes, o livro conta também com imagens de novos talentos da fotografia e membros mais recentes da agência. O livro traz seis imagens de cada fotógrafo, acompanhadas de uma pequena biografia e de um texto crítico escrito por um membro da agência.

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[Eleição da Miss Polónia perto de Gdansk. Foi o primeiro concurso dete tipo na Polónia comunista. A adesão foi tal que tiveram que mudar o local para o telhado de um casino. Erich Lessing/Magnum Photos]

O lema da Magnum, e 60 anos depois de sua criação, continua a ser «ver as coisas de forma diferente». Por isso, as imagens que integram o catálogo da agência apresentam não apenas qualidade técnica, mas alto teor criativo e importância histórica. O livro expõe também os riscos corridos pelos fotógrafos da agência, que cobriram guerras, conflitos e desastres naturais por todo o mundo. Entre os momentos capturados pelas lentes dos fotógrafos da agência e reunidos no livro, estão a Revolução Sandinista na Nicarágua e a morte de Robert Kennedy.

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Nicarágua durante a Revolução Sandinista (1983). Susan Meiselas/Magnum Photos.

Evolution

Posted in livros ao café by JN on Novembro 6, 2007

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Na foto vê-se um Lampris Guttatus (peixe-papagaio ou peixe-lua), do oeste do Atlântico (Patrick Gries/Thames & Hudson; Editions Xavier Barral).

O livro «Evolution», de Jean-Baptiste de Panafieu, lançado recentemente em vários países (em Portugal ainda não), explica por meio de fotos artísticas de esqueletos a teoria de Darwin sobre a evolução das espécies e os laços de parentesco entre os vertebrados. É ilustrado com imagens do fotógrafo Patrick Gries e reúne centenas de esqueletos de animais de vários museus franceses, principalmente do Museu de História Natural de Paris, que possui uma das maiores colecções do mundo.

As fotografias do livro, consideradas «magníficas» pela imprensa francesa, reproduzem os esqueletos como verdadeiras esculturas. Suportes metálicos de algumas vértebras foram retirados para criar a sensação do animal em movimento. O fotógrafo conseguiu reproduzir, por exemplo, as cenas de um felino a atacar um mamífero e de um homem cavalgando, mostrando perfeitamente as pernas do cavalo na posição de corrida.

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Foto: Patrick Gries/Thames & Hudson; Editions Xavier Barral

O livro também é uma ocasião para ver alguns esqueletos que não estão expostos no Museu de História Natural de Paris por falta de espaço e que foram retirados dos arquivos do acervo especialmente para a realização da obra. «Espectaculares, misteriosos, elegantes ou grotescos, os esqueletos dos vertebrados que povoam hoje a Terra carregam os vestígios de uma evolução de vários milhões de anos. Esse livro retraça a História da nossa era, que esses esqueletos guardaram na memória», diz a apresentação de «Evolution». O cientista afirma ainda que não quis escrever um tratado sobre a teoria da evolução das espécies, mas apenas «contar histórias». Para ele, além dos aspectos científicos, os esqueletos também possuem sua própria história; «O esqueleto do elefante do Museu de História Natural de Paris é da época de Luís XIV. O hipopótamo é do período de Luís XV», afirma o autor.

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Na foto mostra-se o esqueleto completo de um elefante africano. O crânio, completo e com as presas, representa um quarto do peso do esqueleto do elefante. (Foto: Patrick Gries/Thames & Hudson; Editions Xavier Barral).

«Evolution», publicado pela editora Xavier Barral em conjunto com o Museu Nacional de História Natural de Paris, é a primeira de uma série de obras produzidas pela editora francesa com o objectivo de unir a ciência ao mundo das artes e pelo que já pude ver o objectivo é muito bem conseguido.

Requiem por um camponês espanhol

Posted in livros ao café by JN on Novembro 1, 2007

«A memória ganha uma força para erguer o herói como um foguete, que estourará e a cana acaba por cair aqui perto de nós.»

José Viale Moutinho, prefácio a «Requiem por um camponês espanhol» de Ramón J. Sander.

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«Um dos maiores escritores de língua castelhana, Ramón J. Sander, acaba de ser trazido ao público português pela prestigiada chancela Campo das Letras, que constitui, no panorama da edição nacional, um caso exemplar. A novela, «Requiem por um Camponês Espanhol», é um texto admirável pelas implicações que sugere. Sander, republicano, não abjurou dos ideais e das convicções e colocou-se ao lado da legalidade (ao contrário de outros), quando Franco protagonizou o golpe de Estado, traduzido numa carnificina medonha. José Viale Moutinho, jornalista e escritor, e uma das pessoas que mais empenho tem demonstrado, no nosso país, em revelar e esclarecer aspectos da Guerra Civil em Espanha, traduziu e prefaciou a novela de Sender. Tradução minuciosa e prefácio extremamente elucidativo. Viale não hesita em dispor, a par da obra-prima de Hemingway, «O Velho e o Mar», a obra-prima de Sender. E não há exagero no paralelismo comparativo. O Dilecto adquira o pequeno volume (85 páginas, prólogo incluído) e verificará que tem entre mãos uma criação literária invulgar.»

Baptista-Bastos, «Jornal de Negócios»

Ramón J. Sender fez parte do Exército Popular da República Espanhola como Oficial do Estado-Maior durante a guerra civil. Quando a esposa foi fuzilada pelas forças franquistas, Sender partiu para o exílio, primeiro no México, depois nos EUA. «Requiem por um camponês espanhol» é uma obra-prima da literatura em língua castelhana como diz o escritor José Viale Moutinho, que assina o prefácio. Nele José Viale Moutinho escreve: «Sendo este um dos melhores e mais concisos romances em que se reflecte a Guerra Civil de Espanha, nunca objectivamente se lhe refere. Apenas reflecte o conflito e é importante que tal se traduza através das relações do poder político com a igreja, do poder político com o povo e deste com a igreja. (…) alguma vez teríamos que concordar com Fernando Savater, que o disse, que no Requiem por um camponês espanhol, Ramón J. Sender demonstra à sociedade ser um escritor que tinha coisas a contar e sabia contá-las

Duas figuras são centrais: Paco do Moinho, o jovem camponês de bom coração e «compaixão virtuosa» pela gente das covas que vivia na miséria, e que acaba por encabeçar as vontades do povo por uma vida melhor o que o levará a ser fuzilado; Monsenhor Millán, o pároco da aldeia que o baptizou, casou e deu a extrema-unção. Querendo estar bem com o poder político e económico e com o povo, sem querer ou não, acabou por o denunciar; Viale pergunta «é enganado ou deixa-se enganar?» Concede a Millán o benefício da dúvida. É durante a preparação da missa de requiem por Paco que se vão reconstruindo os acontecimentos passados.

Numa altura em que o Vaticano beatificou 498 «mártires» católicos da Guerra Civil espanhola, o livro de Sender traz à luz um outro lado da questão, mais incómodo; a cooperação da Igreja Católica com o governo de Franco. Algo que Bento XVI não deveria ter esquecido.

Ícones do conhecimento

Posted in livros ao café by JN on Outubro 25, 2007

«Há milhares de anos que a humanidade procura compreender a natureza. Graças a instrumentos cada vez mais complexos, estamos já em condições de resolver alguns dos seus grandes enigmas. Sob uma esmagadora montanha de factos descobri-mos umas quantas leis fundamentais da natureza, as quais descrevem a estrutura e a evolução da realidade física.
A natureza fala-nos em linguagem matemática. É esta linguagem que nos permite exprimir o nosso conhecimento do mundo físico de forma concisa e isenta de ambiguidades. As leis da natureza são, portanto, expressas em equações. Estas são os ícones do conhecimento que assinalam marcos cruciais no modo como vemos o universo em que vivemos. São igualmente a representação simbólica de muito do nosso saber e, como tal, constituem uma parte importante da nossa cultura.»

R_{\mu\nu}-\frac{1}{2}g_{\mu\nu}R+g_{\mu\nu}\Lambda=8\Pi G_{N}T_{\mu\nu}

«As Equações – ícones do conhecimento» é um livro do físico teórico Sander Bais, da Universidade de Amesterdão. Não é um livro de Física ou Matemática; é um livro de viagem pela História da ciência que revela de uma forma acessível o significado e a beleza de dezassete equações. Para quem estuda ciência, a Matemática é uma linguagem em si, um auxiliar, não o fim como é para os matemáticos. Um idioma em constante expansão onde se descobrem novos e mais profundos aspectos da realidade física.

Um livro escrito a pensar em quem aprecia coisas belas (mesmo com forma pouco agradável à partida) e que possuam ou não conhecimentos de Matemática.

A queda de um anjo

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Outubro 9, 2007

Calisto Elói – personagem principal do livro «A Queda de um Anjo» de Camilo -, morgado da Agra de Freimas, vive em Caçarelhos com sua mulher, Dona Teodora de Figueiroa e com seus livros. O seu conhecimento dos clássicos, aos quais dedicou toda a vida, enche-o de uma sabedoria moralista e conservadora que o faz ser eleito deputado pelo círculo de Miranda. No Parlamento defender entre outras coisas, o bom uso da língua portuguesa e combate à luxúria. Toda a sua habilidade na retórica e na oratória parlamentar vem ao de cima nos seus discursos, recebidos com entusiasmo, nos quais ele defende sempre a moral dos bons costumes antigos e ataca a liberalidade dos tempos modernos; e a sua fama vai se avolumando, adquirindo uma dimensão grandiosa.

Mas o destino e a grande cidade têm planos para o Sr. morgado e Calisto Elói acaba por ser corrompido por esses mesmos vícios e costumes dos novos tempos. Camilo em «A Queda de um Anjo» traça alegoricamente o percurso da contaminação do Portugal antigo por modas políticas, sociais, religiosas e culturais a partir do percurso do morgado Calisto Elói, um anjo caído em desgraça.

Assim como Calisto Elói, muitos – depois de atingirem o topo e o respeito de todos – caiem em desgraça vítimas dos vícios que sempre recusaram e/ou atacaram. Alguns pedem desculpa e devolvem as honras recebidas.

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Marion Jones

Dom «Quixote» Nader

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Junho 26, 2007

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Angel Boligan, «El Universal»

«Nisto descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que há naquele campo; e logo que Dom Quixote os viu disse ao seu escudeiro:
– A aventura vai guiando as nossas coisas melhor do que poderíamos desejar; porque vês ali, amigo Sancho Pança, donde se avistam trinta ou poucos mais desaforados gigantes, com quem penso travar batalha e tirar-lhes a todos as vidas, com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus arrancar tão má semente da face da terra.
– Que gigantes? -perguntou Sancho Pança.
– Aqueles que ali vês – respondeu seu amo – de braços compridos, que alguns costumam ter quase duas léguas.
– Olhe vossa mercê – retorquiu Sancho – que aqueles que ali se avistam não são gigantes, e o que neles parecem braços são as aspas, que volteadas pelo vento, fazem girar a pedra do moinho.
– Bem se vê – observou dom Quixote – que não estás formado nisto de aventuras; aquilo são gigantes, e se tens medo afasta-te daí e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.
E, dizendo isto, meteu esporas a Rocinante, sem atender aos brados que o seu escudeiro Sancho lhe dava, advertindo-o que sem a menor dúvida eram moinhos de vento e não gigantes aqueles que ia acometer. Mas ele ia tão convencido que eram gigantes, que nem ouvia os avisos do seu escudeiro nem adregava ver, embora estivesse já bem perto, o que realmente eram; antes ia dizendo em alta grita:
– Não fujais, cobardes e vis criaturas, que é um cavaleiro sozinho que vos acomete.
Levantou-se nisto um pouco de vento, e as grandes aspas começaram a mover-se, o qual visto por dom Quixote, este disse:
– Pois ainda que movais mais braços que os do gigante Briareu, haveis de pagar-mas.
E, em dizendo isto, e encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcineia pedindo-lhe que em tal transe o socorresse, bem coberto com a sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo o galope de Rocinante e investiu contra o primeiro moinho que tinha em frente; e dando-lhe uma lançada na aspa, o vento fê-la girar com tanta fúria que fez a lança em pedaços, arrastando atrás de si o cavalo e o cavaleiro, que foi rolando muito mal tratado pelo campo.
Acudiu Sancho Pança a socorrê-lo a todo o correr do seu asno, e quando chegou descobriu que o amo não se podia mexer; tal foi a pancada que deu com Rocinante.
– Valha-me Deus! – disse Sancho – não lhe disse eu a vossa mercê que olhasse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, coisa que não poderia ignorar se não tivesse outros moinhos na cabeça?
– Cala-te amigo Sancho – respondeu dom Quixote -, que as coisas da guerra, mais do que quaisquer outras, estão sujeitas a contínua mudança; quanto mais penso, e assim é verdade, que aquele sábio Frestão, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos para me furtar a glória de vencê-los; tal é a inimizade que me tem; mas, ao fim e ao cabo, hão-de poder pouco as suas malas-artes contra a bondade da minha espada.»

Retirado de «Dom Quixote», vol. I, cap. VIII, de Miguel Cervantes

Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, protagoniza o que muitos consideram como o melhor texto de ficção já concebido. Montado em seu fiel Rocinante e acompanhado de Sancho, o Cavaleiro promove sucessos e combate agravos, ampara donzelas e endireita tortos. E embora a vida de cavaleiro andante seja dura, não lhe faltam momentos doces ao recordar-se de sua amada, a sem-par Dulcineia del Toboso, flor e espelho do género damesco.

Há sempre algo de romântico naqueles destinados a perder e que o sabem; aqueles que contra tudo e todos abraçam a derrota na luta por algo em que acreditam. E até aqueles cujos moinho de vento são os entraves à candidatura à presidência dos EUA. Tal é o caso do Sr. Ralph Nader, um independente, apoiado pelo Partido dos Verdes americano. Concorreu em 2000 e em 2004 e nestas últimas é considerado o responsável pela derrota de Al Gore na Flórida o que custaria ao Sr. Gore a presidência. O Sr. Nader pretende candidatar-se de novo e, como em 2000, já está a irritar os Democratas. Quanto a ser o desmancha-prazeres dos Democratas em 2004, apenas diz: «George Bush was the spoiler».

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Matt Wuerker, «Politico.com»

Cão Velho entre Flores

Posted in livros ao café by JN on Junho 24, 2007

« – Mas um homem deixa de ser um homem quando morre?
Não deixa de ser homem quando morre, não senhor; lembras-te do nosso avô?, o nosso avô?, o nosso avô era um cão entre as flores, e morreu assim, como velho a apreciar as flores, e a gente lembra-se dele porque era um velho sem deixar de ser homem, sem deixar de apreciar as coisas que fazem a vida de um homem, a valentia, isso era como as flores para os cães velhos, os cães velhos dos campos, quando pressentem que estão à morte, procuram as terras onde há flores para morrerem mais à vontade, a valentia é isso e um homem deixa de ser homem quando perde essa valentia, valente é o homem que está cheio de medo daquilo que lhe vai acontecer, mas avança, é como o cão a avançar para as flores, ele sabe que vai morrer mas procura o sítio ideal para morrer; quando um homem está a morrer as pessoas devem respeitar isso.»

Baptista-Bastos, in «Cão Velho entre Flores»

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Os meus livros reflectem parte de um compromisso assumido: pensar o País através de fábulas que, habitualmente, têm como cenário Lisboa e os bairros. É uma geografia literária reinventada do «real» ou «realmente» imaginada. São histórias de derrotados e de proscritos numa teia social desprezível, exactamente porque os despreza. Mas esses derrotados são vendedores morais, porque a sua dicção, indócil, sóbria e criativa, identifica a clareira onde reside a dignidade. Diria, ainda, que essas pessoas de quem falo são colossos frágeis e luminosos, motivados por ambições modestas, porém com uma energia infatigável no enfrentar de todos os perigos e de todas as ameaças.
«Cão Velho entre Flores» não foge à regra. É um dos meus livros mais amados. É um dos meus livros que mais amo. E é também aquele onde a estrutura narrativa mais delimita as proporções e os conflitos da cultura e Poder, entre quem manda e quem é mandado. Reconheço haver uma certa insolência na pretensão de escrever sobre bairros como se procurasse compreender o mundo.
Mas é ao abrigo desse insolente pretensão que procurei servir uma certa forma de rigor. O mundo, afinal, não é mais do que uma imensidão de bairros, disposto num labirinto de ruas. E não é nas ruas que se dirimem as grandes questões da liberdade, que se erguem barricadas feitas de cólera e de sonhos humanos, que se guerreia o quotidiano, que se marcam encontros fugazes ou definitivos?
(…) Pertenço a uma família literária que recusou as delícias da tranquilidade e sempre se envolveu nos turbilhões das épocas. Não há equívocos nem ambiguidades nestas opções. Porque todos os livros são políticos, e todos os autores representam ou reflectem uma ideologia, logicamente associada à história, à politica, à sociedade. Adianto: as estruturas sociais estão não só «impressas» nos livros, nos materiais utilizados pelos autores – como, também, na própria interpretação que dos textos o leitor faz.
Estes fenómenos acentuam-se, de uma maneira geral, nas sociedades actuais, cada vez mais dominadas pelo mercado e instrumentalizadas por uma racionalidade tecnológica, e redespertam a vontade de se estudar a natureza do papel hoje reservado à arte, à literatura, ao cinema – à cultura, numa palavra.
Transladando estes conceitos, que podem ser a mediação entre «identidade» e «totalidade», porventura mais desejadas do que obtidas, cada livro pretende reconstruir o misterioso «puzzle» da vida, e descortinar, interrogando, o que ocorre no coração dos homens. Essa elucidação progressiva e lenta impele o escritor a um forte sentimento de abandono, inscrito na teia complicada das suas intermitentes angústias.
(…) Um livro vale o que vale, e nenhum prefácio altera, para o mal ou para o bem, o que está lá dentro. Convido-o, pois, a viajar comigo pelas ruas de uma infância aflita.

Baptista-Bastos, «O Diálogo Emprestado e as Difíceis Harmonias», in prefácio de «Cão Velho entre Flores»

Um livro a ler.

Leitura…

Posted in livros ao café by JN on Abril 28, 2007

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Kurt Vonnegut

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Abril 15, 2007

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John Sherffius, Boulder Daily Camera

Morreu Kurt Vonnegut, autor de «Slaughterhouse-Five» («Matadouro Cinco ou a Cruzada das Crianças: Uma Dança com a Morte», versão potuguesa) e colaborador do jornal «In These Times». Em «Slaughterhouse-Five», Vonnegut conta a tentativa de um ex-soldado americano que lutou na Segunda Guerra Mundial de escrever sobre a experiência da guerra. O personagem por ele criado, Billy Pilgrim, é um americano, que viaja no tempo, para outros planetas, e visita diversos momentos da sua própria vida – sendo o ponto crucial da sua existência o episódio em que foi feito prisioneiro durante a Segunda Guerra, quando presenciou o bombardeio da cidade alemã de Dresden, em que morreram 135 mil pessoas – o dobro de mortes causadas pela bomba de Hiroshima.

Publicado em 1969, no auge da guerra do Vietname, «Slaughterhouse-Five» foi classificado pelo conselho editorial da Modern Library um dos 20 melhores romances em língua inglesa do século XX. Embora seja conhecido como um romance contra a guerra, Vonnegut oferece muito mais do que um manifesto pacifista no seu livro. Trata-se de crítica social, a expressão de uma visão do mundo ingénua e desencantada…

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Scott Stantis, «The Birmingham News»

Moby Dick

Posted in livros ao café by JN on Abril 8, 2007

«Call me Ishmael. Some years ago – never mind how long precisely – having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world. It is a way I have of driving off the spleen, and regulating the circulation. Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people’s hats off – then, I account it high time to get to sea as soon as I can. This is my substitute for pistol and ball. With a philosophical flourish Cato throws himself upon his sword; I quietly take to the ship. There is nothing surprising in this. If they but knew it, almost all men in their degree, some time or other, cherish very nearly the same feelings towards the ocean with me. (…)»

Herman Melville, in «Moby Dick; or, The Whale»

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Dwane Powell, «Raleigh News & Observer»

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Pat Bagley, «Salt Lake Tribune»

Flatland…um país plano…

Posted in livros ao café by JN on Abril 1, 2007

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«Chamo ao nosso mundo Flatland, não porque assim o nomeamos, mas para vos tornar mais acessível, caros leitores que tendes o privilégio de viver na Spaceland, a sua natureza.
Imaginai uma vasta folha de papel na qual Linhas Recta, Triângulos, Quadrados, Pentágonos, Hexágonos e outras figuras, em vez de permanecerem fixas nas suas posições, se movimentam livremente ao longo da superfície ou dentro dela, mas sem o poder de se elevarem acima dela ou descerem abaixo dela, agindo precisamente como as sombras, embora mais rígidas e de contornos luminosos, e ficareis com uma ideia acerca da minha terra e de como são os meus compatriotas. Não há muitos anos, devo dizê-lo, eu teria escrito «o meu universo», mas, no momento presente, o meu espírito tem das coisas uma compreensão bem mais elevada.»

«Flatland» de Edwin A. Abbott

Qualquer um dirá, fruto da experiência quotidiana, que o conceito de dimensão está ligado aos conceitos de comprimento, largura e altura; ou seja, vivemos num mundo «tridimensional, e é neste espaço tridimensional que descrevemos o nosso mundo e onde aplicamos as nossas regras… Quaisquer conclusões geométricas a que se chegasse eram tidas em conta apenas por analogia com os resultados da geometria tridimensional, e não tendo em conta qualquer relação com o que se pudesse passar no Universo.

Albert Einstein, entre outros, mostrou ser necessário considerar, pelo menos, quatro dimensões, espaço-tempo, para se poderem ter em conta os fenómenos observáveis na natureza (havendo já quem diga que são precisas mais quatro). A observação do comportamento dos electrões, movendo-se no vácuo com velocidades da ordem da luz, veio a confirmar algumas das conclusões de Einstein obrigando a que as noções da cinemática fossem revistas.

A Relatividade passou a ser «assunto popular» a partir do momento em que uma nova teoria da gravitação foi formulada pelo mesmo Einstein. A Teoria Geral da Relatividade viria a ser confirmada através do curvar da luz a passar perto da superfície solar e, por conseguinte, pelo aparente deslocamento das estrelas muito próximas do Sol em relação à sua posição real, quando fotografadas durante um eclipse solar, experiência que foi conduzida por Sir Arthur Stanley Eddington em 1919.

Numa situação análoga a esta podemos situar «Flatland» de Edwin Abbot. Este descreve um mundo diferente, plano, habitado por seres inteligentes que vivem nesse mundo a duas dimensões sem a possibilidade ou faculdade que lhes permita tomarem consciência do que se passa fora do seu mundo plano. Em «Flatland» é pedido ao leitor, que conhece o seu mundo «tridimensional» que imagine uma esfera descendo sobre a superfície de Flatland, atravessando-a…

Os habitantes de Flatland não verão a aproximação da esfera e não terão nenhuma noção da sua solidez; terão apenas a consciência do círculo que ela forma ao intersectar a superfície plana. Este círculo que é visto primeiro como um ponto, aumentará gradualmente de diâmetro até que metade tenha atravessado a superfície; em seguida, o círculo contrair-se-á progressivamente, tornando-se novamente um ponto e desaparecerá…

«Flatland» é uma mistura bem elaborada de matemática, geometria, crítica social e humor. A história é narrada por um simples Quadrado, que nos vai guiar pelo mundo de Flatland e pela vida dos seus habitantes. Estes estão divididos por classes sociais que são directamente proporcionais ao número de lados que cada habitante tem; a classe social mais baixa é a dos triângulos isósceles, e a mais alta, a dos círculos (polígono com um número infinito de lados). Entre eles, estão os triângulos equiláteros (a classe média), os quadrados e, acima deles, os polígonos regulares (a aristocracia)… As mulheres em Flatland são apenas linhas, que vistas pelos outros habitantes, e de frente, reduzem-se a um ponto, o que podem causar sérios acidentes, como perfurar um transeunte distraído; o facto obrigou a haver entradas diferentes para «homens» e «mulheres« nas casas…

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«Flatland» é também uma crítica social à sociedade vitoriana, época em que foi escrito…

Após a «visita» da esfera, e visitar a Spaceland, o nosso narrador, vê-se desafiado a entender um mundo que não existe nos seus conceitos. O resultado desta visita, é que ao voltar ao seu país natal, ele transforma-se num «visionário» de mundos não-existentes. Pior que isso, ele transforma-se literalmente num profeta e passa a ser segregado ao propor uma teoria de três dimensões…

Os 80 de Márquez…

Posted in livros ao café, notas ao café by JN on Março 7, 2007

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«Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.»

Assim começa «Cem Anos de Solidão» de Gabriel García Marquez de 1967; conta as vicissitudes da numerosa descendência da família Buendía ao longo de várias gerações. Todos sempre em luta contra uma realidade violenta, excessiva, sempre à beira da destruição total. É tido, por consenso, como uma das obras-primas da literatura latino-americana moderna. O livro fez o colombiano Gabriel García Márquez uma celebridade em todo o mundo; quinze anos depois, em 1982, Márquez receberia o Prémio Nobel da Literatura.

Este senhor fez 80 anos

Os meus parabéns e obrigado pelas muitas e boas horas de (não) solidão com os seus livros…

A Lenda de Despereaux

Posted in livros ao café by JN on Março 5, 2007

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«Esta história começa dentro das muralhas, com o nascimento de um rato. Um rato pequenino. o último rato a nascer de seus pais e o único sobrevivente da sua ninhada.
– Onde estão os meus filhos? – perguntou a mãe exausta, quando o seu sofrimento terminou. – Mostrem-me os meus filhos.
O pai rato ergueu um ratinho pequenino no alto.
– Apenas este resistiu – disse. – Os outros morreram.
Mon dieu, só um ratinho bebé?
– Só um. Queres dar-lhe um nome?
– Tanto trabalho para nada – comentou a mãe.
Tratava-se de uma ratinha francesa que chegara ao castelo há muito, muito tempo, na bagagem de um diplomata francês que viera de visita. «Desilusão» era uma das suas palavras preferidas e usava-a muitas vezes.
– Vais dar-lhe um nome? – repetiu o pai.
– Se vou dar-lhe um nome? Se vou dar-lhe um nome? Claro que sim, mas ele morrerá como os outros. Oh, é tão triste. Oh, é tamanha tragédia.
A mãe rata levou um lenço ao focinho e abanou-o em frente à cara. Fungou.
– Vou dar-lhe um nome. Sim. Chamarei a este rato Despereaux, por toda a tristeza, pelos muitos desesperos deste lugar. Agora, onde está o meu espelho?
O seu marido entregou-lhe um pequeno estilhaço de espelho. A mãe rata, que se chamava Antoinette, olhou para o seu reflexo e gritou de espanto.
– Toulèse – disse a um dos seus filhos -, vai buscar a minha bolsa de maquilhagem. Os meus olhos estão um susto.
Enquanto Antoinette retocava a pintura dos olhos, o pai rato pousou Despereaux numa cama feita de trapos de cobertor. O sol de Abril, débil mas determinado, brilhava por uma das janelas do castelo e espremia-se por um buraquinho pequeno na parede, lançando um dedo dourado sobre o ratinho.
Os outros ratos, mais velhos, juntaram-se todos para observarem Despereaux.
– As orelhas dele são muito grandes – disse a sua irmã Merlot. – Nunca vi orelhas tão grandes.
– Vejam – disse um irmão chamado Furlough -, os olhos dele estão abertos. Papá, ele tem os olhos abertos. Não deviam estar abertos.
É verdade. Os olhos de Despereaux não deviam estar abertos. Mas estavam. Estava a fitar o sol que se reflectia do espelho da sua mãe. A luz brilhava em direcção ao tecto, numa auréola cintilante, e ele sorria ao vê-la.
– Passa-se alguma coisa com ele – disse o pai. – Deixem-no em paz.
Os irmãos e irmãs do Despereaux afastaram-se do novo ratinho.
– Este é o último – declarou Antoinette, deitada na cama. – Recuso-me a ter mais ratinhos. São uma completa desilusão. Destroem-me a beleza. Estragam-me a aparência. Este foi o último. Nunca mais.
– O último – disse o pai. – E morrerá em breve. Não pode sobreviver. Não com os olhos assim abertos.
Mas, leitor, ele sobreviveu.
E esta é a sua história.»

«Nasce um rato», capítulo um, retirado de «A Lenda de Despereaux» de Kate DiCamillo

Um livro de Kate DiCamillo sobre um ratinho, Despereaux Tilling, um herói improvável, um pequeno mas corajoso rato, é diferente dos restantes ratos. Os seus sonhos conduzem-no para fora do mundo dos ratos e para o mundo das pessoas e das ratazanas. Pelo caminho, ele descobre algumas coisas surpreendentes sobre si mesmo e sobre aqueles que o rodeiam.

Um rato apaixonado por música, histórias e por uma princesa chamada Ervilha. Nas sua aventuras conhecerá Roscuro, uma ratazana que vive na escuridão mas anseia por um mundo cheio de luz, e Miggery Sow, uma pequena criada pouco inteligente com um desejo simples mas impossível…

Em 2004 recebeu a The Newbery Medal e foi considerado pela «Publishers Weekly» o melhor livro do ano para crianças. É um livro para crianças, é verdade… mas qualquer adulto gostará…

A busca de Horus…

Posted in cinema ao café, livros ao café by JN on Fevereiro 22, 2007

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Do seu livro «A Trilogia de Nikopol», de Enki Bilal (o meu autor de banda desenhada favorito, confesso)… realizou o filme «Immortel (Ad Vitam)», um filme baseado na primeira e segunda parte desta novela, «A Feira dos Imortais» e «A Mulher Armadilha». Bilal que realizou, escreveu o argumento e idealizou os cenários, utiliza no filme personagens reais e personagens animadas por computador…

Estamos em Nova Iorque no ano de 2095. Numa pirâmide flutuante os Deuses do antigo Egipto julgam Horus, um deus com cabeça de falcão, e condenam-o à morte. Um último desejo é-lhe concedido antes da sentença. Ele escolhe andar de novo entre os humanos…

Na cidade existe uma mulher, Jill, de cabelo azul que derrama lágrimas azuis. Horus cruzou o Universo para a conhecer e tem sete dias para o fazer. Ela tem a capacidade genética de engravidar de um deus, o que concederia a Horus a imortalidade. Para o conseguir, Horus vai possuir o corpo de Nikopol, um prisioneiro político que acabou de fugir…

As críticas foram muito distribuídas entre o bom e o menos bom, mas eu nunca liguei muito às críticas… Vejo por mim mesmo… Claro, é preciso gostar deste tipo de filme!

Entrevista a Einstein

Posted in livros ao café by JN on Fevereiro 19, 2007

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«Vamos seguir esta jovem que caminha a pé pela rua fora. Parou por instantes para deixar passar alguns automóveis, depois atravessou, sem se preocupar com os sinais luminosos.
Estamos numa cidade da Europa central, nos dias de hoje, em Praga ou Viena; talvez Munique ou Zurique. (…) Aparentando entre 22 e 25 anos, era bastante esbelta revelando grande vivacidade no olhar e nos movimentos. Pendurada no ombro, levava uma sacola. Podíamos tomá-la por uma estudante. Mas no final dos seus estudos.
Naquele momento, estamos a observá-la. Nunca saberemos de onde vem, nem como se chama, nem o que fazem os pais, nem qual será a sua vida. Seguimo-la apenas porque o nosso olhar pousou sobre ela naquela rua.
(…)
Por cima da cabeça, localizou uma habitação de 1910 ou 1920, de fachada pesada e um pouco acinzentada. Verificou um endereço num pedaço de papel, que retirara todo amarfanhado de um dos bolsos das calças.
Era ali. Entrou.
(…)
A rapariga, a que chamaremos também estudante ou jovem visita, atravessou uma porta dupla e desta vez encontrou-se num escritório bastante amplo, repleto de livros, revistas, brochuras, documentos e instrumentos diversos; havia também um quadro preto (com apagador e giz), uma estante e alguns móveis que, também ali, pareciam datar dos inícios ou meados do século XX.
Observou rapidamente este novo cenário, sem conseguir fixar todos os pormenores em breves instantes.
Viu, no entanto, que outras três portas, de momento fechadas, davam para a sala. Três portas, além daquela por onde acabava de entrar.
Atrás dela, uma voz de homem bastante aguda, quase esganiçada, fez-se ouvir:
– Pode deixar-nos, Helen.
Voltou-se e viu-se em frente de Albert Einstein, tal como a eternidade o fixou. Albert Einstein em pessoa. Fácil de reconhecer. Aparentava 55 ou 60 anos, apresentava o farto bigode e os cabelos compridos e grisalhos que lhe reconhecemos, os olhos escuros de pupilas pesadas caindo para um dos lados, a testa alta e enrugada. O rosto de um homem conhecido de toda a gente.»

Jean-Claude Carrière, in «Entrevista a Einstein»

Uma jovem estudante que não conhecemos, não sabemos de onde vem, um dia, numa cidade que desconhecemos, entra numa casa que não sabemos onde fica…

Nessa casa, entra numa sala de espera onde algumas pessoas, com pastas e documentos, aguardam pacientemente. Constata que o seu relógio de pulso parou… Mas, naquela sala de espera, ninguém é capaz de lhe dizer que horas são. Algum tempo depois, é convidada a entrar numa outra sala onde vai encontrar Albert Einstein. Como sempre, este está ocupado a tentar descobrir a equação (final) que explica o universo.

Einstein, que gosta de visitas e parece estar habituado a tê-las – entre essas visitas encontra-se Sir Isaac Newton que tenta provar a todo o custo que Einstein está errado -, aceita responder às suas perguntas. Naquela sala onde o tempo se mistura – e afinal o que é o «Tempo» – irá falar-se da vida de Einstein, do seu pensamento, de ciência e filosofia, do mundo…

Um livro interessante sem dúvida…

A História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar

Posted in livros ao café by JN on Janeiro 24, 2007

«Os quatro gatos começaram a miar uma triste litania ao pé do velho castanheiro, e aos seus miados bem depressa se juntaram os dos outros gatos das vizinhanças, e depois os dos gatos da outra margem do rio, e aos miados dos gatos uniram-se os uivos dos cães, o piar lastimoso dos canários engaiolados e dos pardais nos seus ninhos, o coaxar triste das rãs, e até os desafinados guinchos do chimpanzé Matias.
As luzes de todas as casas de Hamburgo acenderam-se, e naquela noite todos os seus habitantes perguntaram a que se deveria a estranha tristeza que subitamente se havia apoderado dos animais.»

Luís Sepúlveda in «A História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar»

A «História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar» é uma parábola tanto para crianças como para adultos, que conta a história de um gato, Zorbas, que se encarrega de tomar conta do ovo de uma gaivota.
Um dia, uma gaivota que é apanhada por uma maré negra deixa ao cuidado de Zorbas, momentos antes de morrer, o ovo que acabara de pôr. É neste momento que Zorbas faz duas promessas que cumprirá: criar a pequena gaivota e ensiná-la a voar. Para tal tem a ajuda de quatro amigos: Secretário, Sabetudo, Barlavento e Colonello. Mas como irão descobrir, a tarefa não será fácil para um bando de gatos…

É uma fábula ainda na «altura» em que os animais falavam (nos dias de hoje…). Neste caso são gatos, gaivotas e cães. No fim Zorbas falará com um homem; para tal terá uma licença especial… Foi o primeiro em muito tempo a fazê-lo, mas teve que ser; tudo pelo bem da jovem gaivota. E é através destes animais que Luís Sepúlveda oferece algumas lições importantes a todos nós. Oferece-nos uma lição de sobrevivência, uma lição de fidelidade e de honra aos compromissos que aceitamos.

Não é um livro infantil mas não deixa, todavia, de ser recomendado a todas as crianças de qualquer idade!

Homem versus Cidadão

Posted in livros ao café by JN on Janeiro 17, 2007

«A educação actual e as actuais conveniências sociais premeiam o cidadão e imolam o homem. Nas condições modernas, os seres humanos vêm a ser identificados com as suas capacidades socialmente valiosas. A existência do resto da personalidade ou é ignorada ou, se admitida, é admitida somente para ser deplorada, reprimida ou, se a repressão falhar, sub-repticiamente rebuscada. Sobre todas as tendências humanas que não conduzem à boa cidadania, a moralidade e a tradição social pronunciam uma sentença de banimento. Três quartas partes do Homem são proscritas. O proscrito vive revoltado e comete vinganças estranhas. Quando os homens são criados para serem cidadãos e nada mais, tornam-se, primeiro, em homens imperfeitos e depois em homens indesejáveis.
A insistência nas qualidades socialmente valiosas da personalidade, com exclusão de todas as outras, derrota finalmente os seus próprios fins. O actual desassossego, descontentamento e incerteza de propósitos testemunham a veracidade disto. Tentámos fazer homens bons cidadãos de estados industriais altamente organizados: só conseguimos produzir uma colheita de especialistas, cujo descontentamento em não serem autorizados a ser homens completos faz deles cidadãos extremamente maus. Há toda a razão para supor que o mundo se tornará ainda mais completamente tecnicizado, ainda mais complicadamente arregimentado do que é presentemente; que graus cada vez mais elevados de especialização serão requeridos dos homens e mulheres individuais. O problema de reconciliar as reivindicações do homem e do cidadão tornar-se-á cada vez mais agudo. A solução desse problema será uma das principais tarefas da educação futura. Se irá ter êxito, e até mesmo se o êxito é possível, somente o evento poderá decidir.»

Aldous Huxley, in «Sobre a Democracia e Outros Estudos»

«As Predadoras»

Posted in livros ao café by JN on Janeiro 15, 2007

«Este célebre ballet electrónico é talvez a mais dramática de todas as danças modernas. Começa com uma abertura de sons contemporâneos: ruídos de rua, tique-taques de relógios, um anão que toca Hora Staccato com um pente e um lenço de papel. O pano sobe então sobre um cenário nu. Durante vários minutos não se passa nada; por fim, o pano desce e há intervalo.
O segundo acto começa em silêncio enquanto uns jovens dançam fingindo ser insectos. A primeira figura é uma mosca comum; os outros apresentam-se como uma variedade de parasitas de jardim. Movem-se sinuosamente ao compasso da música dissonante, em busca de um pão com manteiga imenso que gradualmente surge ao fundo. Estão prestes a comê-lo quando são interrompidos por uma procissão de mulheres que levam uma grande embalagem de DDT. Tomados de pânico, os machos tentam escapar, mas são encerrados em jaulas metálicas, sem ter nada que ler. As mulheres dançam orgiacamente à roda das jaulas, preparando-se para devorar os machos logo que arranjem molho de soja. Enquanto as mulheres se preparam para jantar, uma rapariga repara num macho, abandonado, de antenas caídas. Sente-se atraída por ele, ambos dançam lentamente ao som das trompas, enquanto ele lhe sussurra ao ouvido: “Não me comas.” Apaixonam-se e fazem complicados planos para realizar um voo nupcial, mas a fêmea muda de opinião e devora o macho, preferindo alugar um apartamento a meias com uma companheira.»

Woddy Allen, in «Sem Penas»

As Cidades Invisíveis

Posted in livros ao café by JN on Janeiro 4, 2007

«Embora a memória e o raciocínio sejam duas faculdades essencialmente diferentes, uma só se desenvolve completamente com a outra.»
Rousseau

«Nada garante que Kublai Kan acredite em tudo o que diz Marco Polo ao descrever-lhe as cidades que visitou nas suas missões, mas a verdade é que o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano com a maior atenção e curiosidade que a qualquer outro enviado seu ou explorador. Na vida dos imperadores há um momento, que se segue ao orgulho pela vastidão ilimitada pelos territórios que conquistámos, à melancolia e ao alívio de sabermos que em breve renunciaremos a conhecê-los e a compreendê-los; um sentimento como que de vazio que nos assalta uma noite com o cheiro dos elefantes depois de chover e da cinza de sândalo que arrefece nas braseiras… (…)…é o momento desesperado em que se descobre que este império que nos parecera a soma de todas as maravilhas é uma ruína sem pés nem cabeça… (…) Só nos relatos de Marco Polo, Kublai Kan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a ruir, a filigrana de um desenho tão fino que escapasse ao roer das térmitas.
(…)
Tudo o que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar que explicava ou imaginarem que explicava ou conseguir finalmente explicar a si próprio que aquilo que ele procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo que se tratasse do passado era um passado que mudava à medida que ele avançava na sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, digamos não o passado mais próximo a que cada dia que passa acrescenta um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade o viajante reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos. (…)
– Viajas para reviver o teu passado? – era agora a pergunta do Kan, que também podia ser formulada assim:
– Viajas para achar o teu futuro?
E a resposta de Marco: – O algures é um espelho em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve nem terá.
(…)
Kublai Kan verificava que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a paisagem de uma para a outra não implicasse uma viagem mas sim uma troca de elementos. Agora, de todas cidades que Marco lhe descrevia, a mente de do Grão Kan partia por sua conta e risco, e desmontando a cidade peça a peça, reconstruía-a de outro modo, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os.
Marco entretanto continuava a informá-lo da sua viagem, mas o imperador já não o ouvia, interrompia-o:
– De agora em diante serei eu a descrever as cidades e tu verificarás se existem e se são como as pensei.
(…)
– Fala-me de mais outra cidade – insistia.
– De lá o homem parte e cavalga três dias entre o gregal e o Levante… – recomeçava Marco, e a enumerar nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. O seu reportório podia dizer-se inesgotável, mas agora foi a sua vez de se render. Era de madrugada quando disse:
– Sire, já te falei de todas as cidades que conheço.
– Falta uma que nunca falas.
Marco Polo baixou a cabeça.
– Veneza – disse Kan.
Marco sorriu.
– E de qual julgavas que eu te falava?
O imperador nem pestanejou.
– Mas nunca te ouvi dizer o seu nome.
E Polo: – Sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza.
– Quando te pergunto por uma outras cidades, quero ouvir-te falar delas. E de Veneza, quando te perguntar por Veneza.
– Para distinguir as qualidades das outras, tenho de partir de uma primeira cidade que está implícita. Para mim é Veneza.
– Deverias então começar todos os relatos das tuas viagens pelo princípio, descrevendo Veneza tal como ela é, toda, sem omitir nada do que dela recordas.
(…)
– As imagens da memória, depois de fixadas com as palavras, apagam-se – disse Polo. – Talvez eu tenha medo de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a perdê-la pouco a pouco.
(…)
– …Então é mesmo uma viagem na memória, a tua! (…) Regressas das tuas expedições com o porão cheio de saudades!
(…)
Kublai: – Não sei quando tiveste tempo para visitar todos os países que me descreves. Eu acho que tu nunca saíste deste jardim.
(…)
Kublai pergunta a Marco: – Quando tornares ao poente, repetirás à tua gente as mesmas histórias que me contas a mim?
– Eu falo – diz Marco, – mas quem me ouve só fixa as pérolas que deseja. Outra é a descrição do mundo a que dás benignos ouvidos, outra a que correrá os grupos dos estivadores e gondoleiros nos canais da minha cidade no dia do meu regresso, e outra ainda a que poderei ditar em tardia idade, se fosse feito prisioneiro pelos piratas genoveses e posto a ferros na mesma cela com um escrivão de romances de aventuras. Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido.»

Italo Calvino, in «As Cidades Invisíveis»

Kublai sabe que um homem não pode entender o que tem pela frente se não conhecer o que passou por ele, se não entender o que foi. O Kan sabe que a verdadeira arte da memória é a atenção. Não sabemos se ele acredita em tudo o que Marco conta ao descrever as cidades que viu; mas talvez isso não lhe interesse. O Kan sabe que um homem sem passado não tem futuro porque não o poderá entender. Ao escutar Marco Polo ele revive memórias que não são dele e inventa as suas…O imperador e o viajante formam a realidade na memória. E ao viajar pela memória de Marco, o Kan tenta também descobrir o que Marco contará sobre ele; que memória ele está a construir de Kublai Kan…